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Entre o cárcere e a recuperação: os presídios de Campo Grande

23 setembro 2015 - 11h40Por Izabela Sanchez

O diretor João Bosco mostrava as imediações do Presídio de Segurança Máxima Jair Ferreira, em um corredor onde transitavam agentes com molhos de chaves nas mãos, e detentos. Alguns dos internos trabalhavam em reparações na própria estrutura do local.


Lá fora, em meio ao sol quente daquela manhã, uma cena chamou a atenção. Enquanto alguns presos estavam em fila, em um corredor, aparentemente em algum banho de sol, em frente a eles se estendia uma estrutura que parecia uma enorme gaiola de ferro. Anexa, do lado de fora, à alguma cela lá dentro. Nela um homem, sozinho, sem camiseta e agachado, encarava os outros a sua frente.


Entre o cárcere e a recuperação: os presídios de Campo Grande é a terceira matéria da série “Da margem às grades”.


Presídio de Segurança Máxima Jair Ferreira

Ninguém tem dúvida de que o sistema carcerário brasileiro é um dos calos sociais do país. Superlotação e denúncias já são marcas decorrentes. Só em 2014, a população carcerária brasileira chegou a 607.731 pessoas, de acordo com o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça.

                       Presídio de Segurança Máxima Jair Ferreira (foto: Geovanni Gomes)

É a quarta maior do planeta. Só perde para os Estados Unidos, China e Rússia. Desde 2000, a população prisional cresce, em média, 7% ao ano, um aumento de 161%. Valor dez vezes maior que o crescimento do total da população brasileira.

O presídio de segurança máxima Jair Ferreira em Campo Grande, não é diferente. Com capacidade para pouco mais de 600 presos, no mês de agosto o número de internos era de 2.300, número que mais do que duplicou apenas na transição de 2014 para 2015.

“A maioria é tráfico ou assalto, depois vem homicídio, e o próprio roubo né”, conta o diretor do presídio, João Bosco. Assim como as Uneis (Unidades Educacionais de Internação), o presídio tem na sua superlotação um único motivo: tráfico de drogas.

     Entrevista com o diretor do Presídio de Segurança Máxima, João Bosco (Produção: Geovanni Gomes)




“Ah, é uma latinha de sardinha. Mas é mais porque muitas vezes a pessoa também não tem opção... ter de ficar daquele jeito mesmo, entendeu? Não tem oportunidade, essa é a verdade... mais oportunidade”, Ezequiel é uma exceção dentro do presídio. Exceção porque faz parte dos cerca de 300 detentos que têm oportunidade de trabalhar ou estudar e podem dormir em lugares separados. Latinha de sardinha é a cela que ele dividia antes.


“Tem barraco que tem até 20 pessoas. Agora nós já estamos num lugar com menos pessoas, com pessoas que trabalham, que tem... é mais limpo”, conta José Rodrigo, que foi preso por roubo ligado ao tráfico, e trabalha em uma oficina de costura dentro do presídio.

                                                  José Rodrigo (foto: Geovanni Gomes)

Das celas, só apareciam as janelas, com as roupas penduradas, e os olhares de alguns presos que estavam lá dentro.

A rotina do presídio é ociosa. Às 8h30 os pavilhões são abertos para o banho de sol, e assim ficam até 13h30. Os grupos se alternam para ter acesso ao espaço. Quem trabalha ou participa de algum dos cursos oferecidos, se dedica a essas atividades. Os que ficam de fora, podem ser encontrados no pavilhão ou dento das celas.

           Atividades dos poucos presos que têm acesso ao trabalho e estudo (Produção: Geovanni Gomes)

As atividades de trabalho consistem em serralheria, reciclagem e manutenção, que são feitas para a remissão de pena, e a cozinha, marcenaria e fábrica de cadeiras, com remuneração de ¾ do salário mínimo, como prevê o código penal. As oficinas e cursos são resultado de parcerias com instituições como o Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e o Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial). Os trabalhos são convênios com empresas terceirizadas.

                                     Serralheria (foto: Geovanni Gomes)

Em uma sala pequena alguns homens trabalhavam com artesanato. Muito calmo e sorridente, Ezequiel mostrava com orgulho os diversos brinquedos, quadros e outras peças que ele faz com madeira e outros materiais. Ele conta que descobriu o talento ali no presídio, e além do aprendizado, as atividades ajudam a trabalhar o pensamento. “Distrai a mente, né. E sei lá... já acostumei. Todo dia eu venho cedo, faço um trabalho... às vezes alguém pede algum serviço, algum preso, algum agente, aí eu faço”.

Ezequiel tem vontade de abrir o próprio ateliê quando sair da prisão, daqui a três anos. Questionado sobre a possibilidade de um adolescente de 16 anos integrar o sistema prisional, ele afirmou que “entrará uma criança, e sairá uma criança má”.

Conseguir mais convênios e atividades para os presos é uma batalha a ser travada. Diferente do sistema socioeducativo, o sistema prisional brasileiro ainda é encarado exclusivamente pelo caráter punitivo. 

 “No meu ponto de vista, em presídios, nós estamos, aqui no Brasil, a nível medieval. Diferentemente do que ocorre, não sei se você já visitou alguma unidade educacional. Então assim, o sistema penal, em essência, ele é punitivo. Então o que se faz? Prende o sujeito, fica ali condenado, só que quando ele sai, ele sai muito pouco recuperado”. É o que pensa a promotora de Justiça da Infância e da Juventude, Vera Aparecida Cardoso, que já trabalhou na área criminal.

Em outro espaço, o ambiente produtivo e tranquilo das atividades é deixado para trás. Uma sala de aula, uma lousa e carteiras. A descrição de um ambiente educativo como qualquer outro. Mas não é o caso. Na sala, as perspectivas são de diversos olhares lobotomizados e distantes.

“Constituindo Nova Liberdade”, é um projeto da psicóloga Rosana Costa. Uma tentativa de recuperação com presos que possuem casos mais sérios de agressividade.

Não há palavra que alcance descrever a face de um ser humano tão atingido pela violência e pela desordem mental. Olhares perdidos, vazios. Pigarros repetitivos, falas rápidas. Rosana passava aos internos atividades de pintura de desenhos, uma forma, com a ajuda da psicologia, de fazer com que eles se expressem.

                      Projeto "Constituindo Nova Liberdade" (produção: Geovanni Gomes)

Samuel é um dos presos que frequenta a sala. Ele afirma, indignado, que o juiz o considerou “um risco a sociedade”.


Se eu falar a real pra senhora, é a mesma coisa de estar vegetando, é a mesma coisa de estar morto. Levanta aqui, come e dorme, e, às vezes, discute, porque é uma cela pequena aqui, não tem como fazer nada. Tem pessoa que até se matou esses dia, que não tinha mais sentido da vida, não tinha mais nem graça e vontade de viver. Então creio eu, que se a pessoa estiver trabalhando... pra poder mostrar o que sabe fazer, mostrar que ela é uma pessoa boa, uma pessoa normal, é muito bom sabe”, contava ele, alternando uma fala rápida e desesperada.

Samuel agradeceu o trabalho da psicóloga e afirma que o presídio já foi pior, quando havia até guerras entre os dois pavilhões. Mas ele pede mais oportunidades. “Só que a gente pede mais trabalho sabe, mais oportunidade pra gente mostrar que a gente não somos essas pessoas sabe que... que eles diz da gente... tem que mostrar, por exemplo, eu tenho uma profissão de operador, trabalhava em usina, eu sei mexer com mecânica, trabalhei muito assim, mas a gente não tem oportunidade de mostrar”.


Presídio feminino Irmã Irma Zorzi

Diferente do presídio masculino, o presídio Irma Zorzi possui uma logística de administração mais fácil. Assim como na Unei Estrela do Amanhã, de meninas que cumprem medidas socioeducativas, quando o assunto é sistema carcerário, as mulheres ainda são um número inferior ao dos homens, mas essa situação tem mudado. A população carcerária feminina cresce duas vezes mais que a masculina, padrão notado desde 2005.

Da capacidade de 231 internas do Irma Zorzi, o tráfico promove uma variação diária, que pode oscilar de mais de 200 internas até mais de 300. Mas esses números não impedem a aparência de calmaria do local. Desde o jardim com pedras e ornamentos na parte administrativa, até as salas de aula, salões de beleza e aula de jazz.

“O presídio vive em movimento. Nós temos aqui muitos cursos profissionalizantes, inclusive, quinta-feira que vem, 59 internas foram capacitadas entre os cursos de vendedor, manicure e pedicure e maquiador profissional. Então na semana que vem vão ser entregues 03 certificados para essas 59 internas. Há 15 dias efetuamos entregas de certificados pra 25 internas de curso de crochê em vestuário.”

As mulheres também trabalham para remissão de pena ou remuneração de ¾ do salário mínimo. São atividades na cozinha, empacotamento de velas, montagem de caixas e confecções. Todas as empresas são terceirizadas e empregam 170 mulheres. Além do trabalho e dos cursos, a Escola Estadual Polo Profª Regina Lucia Anffe Nunes Betine atende 142 alunas do presídio, em 4 salas de aula. A equipe de saúde também compreende desde técnicos, médicos e enfermeiros até dentistas.

O presídio tem bom funcionamento, mas ainda assim, funcionários reclamam do número irrisório de agentes. Houve um dia, por exemplo, que somente 07 agentes estavam trabalhando para cuidar de 390 internas.

Apesar do número crescente, o sistema carcerário ainda continua mais duro para as mulheres. “Assim, de 100% da massa carcerária daqui do presídio onde eu me encontro, 90% foi sim aliciada por homens, entendeu, por pessoas que estão presas”. Flávia Ângelo está presa por tráfico, e explica que a maioria das mulheres é apresentada ao tráfico pelos companheiros.

“O que presta tem como você aprender também. Só que o que uma adolescente pensa? Se já está no erro lá fora, se não tem estrutura familiar, vai chegar aonde já tem formado o crime, vai ficar pior do que já está. Vai ficar mil vezes pior”. É o que Flávia pensa sobre a redução da maioridade penal.


A saga das mães

O ambiente calmo e iluminado do presídio, ganha um ar melancólico quando se abre a porta do berçário. Sentadas em colchões, mulheres olhavam para cima com expressões resignadas segurando bebês de colo nos braços. As jornadas das mulheres nos presídios, assim como fora deles, são duplamente difíceis por conta das bases culturais machistas.

As mulheres que têm filhos na prisão sofrem ainda mais. Ficam em alojamentos separados enquanto estiverem com os filhos, mas só podem ficar com os bebês até os 06 meses de idade.

Com um sistema judiciário ainda baseado na condenação moral da mulher, muitas vezes a prisão pelo tráfico, maioria nas prisões brasileiras, condena a mulher duas vezes. O estigma que é deixado pela prisão, faz com que essas mulheres corram o risco de perder a guarda dos filhos, além do abandono dos companheiros, que na maioria das vezes não as visitam na prisão.

Nas celas, olhares tentavam captar o que acontecia lá fora por meio da pequena abertura nas portas de ferro maciço. Talvez alguma mãe estivesse ali. Lembrando um bebê que cresce longe dela. Pensando no peso moral de ser uma “mãe do cárcere”.


Os presídios e a alimentação terceirizada

Não é de hoje que o sistema de alimentação terceirizada é alvo de críticas. De trabalho escravo até a péssima qualidade da comida, presídios de todo o país são investigados.

O presídio de segurança máxima tem um contrato R$ 8.614.469,52 com a empresa Real Food, com validade até 28 de dezembro. A empresa é investigada pelo Ministério Público Estadual pela qualidade da comida e pelos contratos firmados com a Prefeitura Municipal. A Real Food servia os funcionários e até larvas já foram encontradas na comida. Mas parece não chamar a atenção quando se trata da alimentação dos presos.

                                                     (foto: Geovanni Gomes)

Além da Real Food, a Health, que servia comida de má qualidade nas Unidades Educacionais de Internação (Uneis), é a empresa que atua no presídio feminino utilizando trabalho das presas.


O peso da punição

O sistema punitivo não é neutro. Assim como no sistema socioeducativo, a população carcerária tem cor, classe e gênero. O número de pessoas negras presas é de 67%. Além disso, mais da metade deles (53%) não completou o ensino fundamental.

A presidenta Dilma Roussef sancionou no dia 10, com veto, mudanças na Lei de Execução Penal para instituir o ensino médio nas penitenciárias. O que se espera é que a determinação mude a realidade dos números, já que somente 10,7% dos presos brasileiros estão incluídos em atividades educacionais.

O peso do martelo punitivo da sociedade, que pressiona o sistema penal e carcerário, parece não render resultados. Seja o tráfico que parece vencer a construção de novos presídios, ou a ideia de que o preso tem que trabalhar de graça e não receber nenhum tipo de estímulo educacional, o que os números mostram é um Brasil que não só falha no combate a violência, como é campeão em produzi-la.