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Meninos e meninas à margem: quem são os alvos da redução da maioridade penal

21 setembro 2015 - 07h00Por Izabela Sanchez

Na contrapartida de países tradicionalmente punitivos, como Estados Unidos, por exemplo, que discutem o aumento da maioridade penal, o Brasil discute e enfatiza a redução como solução ao problema endêmico da violência. Ainda assim, de medidas socioeducativas ao sistema penal e carcerário, o país enfrenta uma vasta falta de estrutura e a ausência de discussão de temas considerados tabus.

“Meninos e meninas à margem: quem são os alvos da redução da maioridade”, é a primeira matéria de uma pequena série que pretende analisar as questões que envolvem a maioridade penal no Brasil.

Bruno* acorda pela manhã e veste a roupa para ir à escola. Aperta o cadarço do tênis surrado. Pega o caderno, coloca uma caneta, um lápis e uma borracha no bolso. Mais velho dos irmãos, ele apressa as crianças. A irmã, dois anos mais nova, vai à escola com ele. A mãe, empregada doméstica, já saiu para trabalhar há horas. Volta quando a noite já atropelou o dia. Come rapidamente o que encontra pela mesa. Hoje tem um café e um pão. Muitos dias não tem nada.

Bruno se despede da irmã e entra na sala de aula. Enquanto o professor explica uma matemática que lhe parece mais distante do que qualquer outra coisa, sua mente vaga. Há muito tempo que ele já se acostumou à rotina. Todos os dias ele vê meninos e meninas com roupas e tênis “melhores” que os dele, além de lidar diariamente com as piadas e hostilidades racistas.

Alguns adolescentes, apesar da escola pública, têm coisas que ele nunca sonhou em ter. Bruno estuda na área central de Campo Grande. Mesmo distante do bairro onde mora, a escola é exigência da mãe.

Mas já tem duas semanas que Bruno tira uma grana extra. Foi com alguns amigos que ele conseguiu o contato. O garoto revende drogas nas esquinas das periferias pra um traficante. Bruno é, há duas semanas, mais um dos aviãozinhos, garotos e garotas utilizados como mão de obra, ao levar a droga para o comprador e devolver o dinheiro para o traficante. A grana é “boa”, e apesar das brigas constantes com a família, ele vai comprar roupas novas, celular, vai poder ir a festas e até ajudar em casa.

Entre uma equação e outra, Bruno imagina o que diria seu pai se soubesse. Pergunta irrelevante, já que o pai mora no Guarujá, estado de São Paulo, com outra família.


“Minha mãe falava as coisas pra mim, mas entrava em um ouvido e saía pelo outro. E ela também não tinha como vir e ficar andando atrás de mim, ela trabalhava né. Era só ela cuidando de nóis. Daí eu ficava ouvindo, ‘não, o menino fez isso, o menino fez aquilo, ta com dinheiro, foi pra festa’”.

Lívia* sai portão afora enquanto a mãe alterna os gritos entre ela e o padrasto. Quando sai de casa, parece que consegue respirar, finalmente. Senta na calçada, fecha os olhos por um instante, e finge estar em outro lugar. Finge ter um quarto só pra ela, e não conviver com as brigas constantes entre a mãe e o marido, que sustenta outra família além da dela. Finge ter dinheiro para comprar roupas, sapatos e coisas boas pra comer. Finge que o pai não está preso. Finge não ser uma menina de 12 anos, moradora da periferia de Água Clara, Mato Grosso do Sul.

Ao longe ela vê a amiga que se aproxima com outro garoto, mais velho, 17 anos. Naquela tarde a menina desabafou com a amiga, reclamou da mãe e até planejou a próxima fuga de casa. Foi, também, nesse dia, em frente a casa em que mora, que Lívia conheceu o futuro marido.


“-Você casou com que idade?


- Com 12 (...) Já teve um tempo que a minha mãe me bateu, que eu fui pro abrigo. Mas só que ela falava, falava, falava, eu não escutava ela (...) eu matava aula. Daí eu casei. Daí a minha mãe falou “vamos ver se ela vai melhorar assim”.

Bruno e Lívia não se conhecem. Mas têm origem na mesma realidade social. Os dois, hoje com 18 e 13 anos, respectivamente, cumprem medidas em Uneis (Unidades Educacionais de Internação) de Campo Grande. Também fazem parte do grupo de risco que será atingido caso o projeto de emenda à constituição, PEC 171/93, que reduz a maioridade penal de 18, para 16 anos, em caso de crimes hediondos, seja definitivamente aprovado.

                                                     (foto: Geovanni Gomes)

Apesar de não serem diretamente atingidos, já que a infração dele e a idade dela não são diretamente contemplados pelo texto aprovado em 2º turno na Câmara, os dois estão socialmente inseridos na camada que o projeto deseja encarcerar.


A redução da maioridade tem classe, cor e gênero

Dados do Ministério da Justiça revelam que 60% dos adolescentes internados em unidades de medidas socioeducativas são negros, 51% não frequentava a escola, 49% não trabalhavam e 66% vinham de famílias extremamente pobres.

“A maioria é vítima de abandono das políticas públicas. Nós vivemos em uma sociedade hipócrita que fala que a responsabilidade daquele adolescente ter cometido um ato infracional é responsabilidade da família, e nós esquecemos, que, historicamente, essa família está dentro de um ciclo vicioso. Então, é um adolescente que tem um histórico de uma mãe, de um pai, que também sofreu um abandono por parte dessas políticas públicas, de avós que conheceram apenas a violência física como forma de aprenderem a ser dignos em uma sociedade preconceituosa”.

Rosana dos Santos de Oliveira é terapeuta ocupacional, especializada em saúde pública e integrou o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e da Adolescência (CEDCA) como representante da sociedade civil por quatro anos. Representando o Instituto Casa da Cultura Afro-Brasileira (ICCAB) à época, ela explica que a camada mais atingida é composta pelos adolescentes negros e moradores das periferias.

    Em entrevista, Rosana dos Santos fala sobre a origem social dos adolescentes que vão para as Uneis (Produção: Deivid Correia)

Além das questões de classe e de cor, a redução da maioridade também tem gênero. Roberto Ferreira é juiz e Presidente do Fórum Nacional da Justiça Juvenil (Fonajuv), e explica que “90% das famílias dos adolescentes que são encaminhados a medidas socioeducativas por terem cometido atos infracionais, são constituídas de mães solteiras”.

É o mesmo dado que apresenta a promotora de Justiça da infância e da juventude, Vera Aparecida Cardoso. “A grande maioria deles são educados pela mãe, em geral com poder aquisitivo muito baixo, muito baixo mesmo, é questão de um salário mínimo, às vezes até menos, quando muito dois”.

O que os dados mostram é que as infrações cometidas por esses adolescentes têm ligação direta com a ausência de paternidade responsável que atinge a sociedade brasileira. Apesar de culturalmente patriarcal, a maioria das famílias no Brasil não corresponde ao modelo estrutural de “pai, mãe e filhos”. São famílias de mães, ou de avós, que assumem papeis duplos, com jornadas sobrecarregadas de trabalho, e salários baixos.

Outra questão que envolve as mulheres é o exemplo de Lívia, que casou com apenas 12 anos. Dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010 e da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), de 2011, apontam que o Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em números de mulheres casadas antes dos 15 anos: 877 mil mulheres com idades entre 20 e 24 anos que casaram antes dos 15 anos.

“Elas saem de casa porque não tem em casa o que elas gostariam. Ás vezes tem a violência dentro de casa. Tem abuso sexual por parte do pai ou padrasto, ou algum membro da família. (...) Ás vezes, o companheiro dá a droga pra ela também, por isso que ela está com ele. Então, é uma relação muito complicada”, explica a psicóloga da Unei feminina “Estrela do Amanhã”, Maria Cecília Costa.

Diferente dos meninos, o casamento em uma sociedade machista e patriarcal, é o modo como essas meninas encontram segurança e legitimação. E como Lívia, muitas se associam às infrações por conta dos companheiros.

Bruno e Lívia são o que a sociedade chama de marginais. Uma palavra que se perdeu de sua origem. Marginal é aquele que vem da margem.

 

“A pessoa bebe da mesma água, toma do mesmo banho, come da mesma comida, não tem nada a ver, não tem diferença, né? Não tem diferença assim ‘ah, só porque ele é moreno ele tem que ser assim e nóis de outro jeito’, acho que não tem diferença não, mas já sofri muito com racismo”.

A margem empurra todos os dias, adolescentes negros e pobres como Bruno, ou meninas carentes como Lívia, para as infrações. Na margem, diferente do que Bruno pensa, não há a mesma água e a mesma comida. Na margem há a falta do que sobra no resto dos lugares. Lugares que se sustentam pela manutenção dos maginais na ordem e progresso da desigualdade social.


*os nomes foram trocados para preservar a identidade dos adolescentes