Política

04/11/2018 14:29

PT sem Lula vira PSOL, diz professor da USP

Legenda teria sólida, mas muito mais minoritária

04/11/2018 às 14:29 | Atualizado 04/11/2018 às 13:41 El País Brasil
Ricardo Musse, professor de Sociologia da USP - Gui Gomes

Quando o Partido dos Trabalhadores (PT) foi criado, em fevereiro de 1980, Ricardo Musse (Goiás, 1959), naquela época um estudante, assinou o seu manifesto de fundação, um documento no qual a agremiação prometia se converter na primeira grande legenda de esquerda no Brasil e combater a desigualdade. 

Desde então, Musse não deixou de seguir, da universidade, a trajetória do PT. Viu como chegaram a governar o Brasil a partir de 2003, durante uma época de bonança espetacular (cuja responsabilidade os petistas arrogam para si), e também assistiu ao período seguinte, de lamentável dacadência e crise econômica (cuja responsabilidade eles negam).

Agora, a sigla se encontra no pior annus horribilis da sua história: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso por corrupção em abril, seu substituto perdeu as eleições presidenciais deste ano, e o tremendo ódio ao PT contribuiu para o alarmante auge do ultraconservador Jair Bolsonaro.
 
Musse, hoje professor de Sociologia na Universidade de São Paulo e especialista no estudo das sociedades capitalistas, recorda o que sobrou daquela agremiação inicial, como ela pode sobreviver ao trauma de 2018 e o que esperar do partido no futuro.

Pergunta. Como o antipetismo se converteu em uma arma tão poderosa?

Resposta. A oposição social ao PT sempre foi muito forte e ódio ao partido já era comum a todos os setores da vida política. Bolsonaro soube o capitalizar [isso] muito bem. Deu forma ao sentimento, o vinculou à rejeição ao sistema político, à indignação e à corrupção. Da parte do PT, houve uma dificuldade em agir. Estava desde 2002 bem embrenhado no sistema político e ao mesmo tempo abandonado por seus aliados e por apoios no meio empresarial, sobretudo entre setores industriais do agronegócio e o setor bancário. Viu-se muito isolado.

P. A oposição significa uma oportunidade de se fortalecer novamente?

R. O PT se fortaleceu fazendo oposição ao governo Temer. Quando houve o impeachment da [ex-presidenta] Dilma, o Lula tinha o 16% dos votos nas pesquisas para o presidente. Agora, na última pesquisa, ele tinha 39%. Isso foi o resultado da oposição. Agora, dependendo de quão autoritário seja o governo de Bolsonaro, haverá uma situação similar aos anos 80 e 90: haverá uma oposição política nos modos do que foi feita no governo Temer, mas também haverá uma resistência social. Pode crescer mais.

P. E a onda atual de antipestimo? Onde fica neste contexto?

R. Haverá movimentos não só no sentido de criminalizar o PT como a Lava Jato fez, mas no sentido de excluir o PT do sistema político. De bani-lo. E essa é uma questão que se coloca como central. Supondo a manutenção da normalidade democrática e as eleições em 2022, o que não é muito garantido.

P. A candidatura de Lula valeu a pena? Não teria sido melhor perder sem ele?

R. A esquerda brasileira mudou pouco nos últimos anos: possui entre 20% e 30% dos votos. Sem Lula, esse seria o limite do PT. Corria o risco de não ir para o segundo turno. O lulismo é mais amplo que a esquerda, é mais amplo que o PT. Então para a esquerda chegar ao poder, a referência ao Lula é imprescindível. O problema é que o Haddad não herdou todos os votos do Lula, mas herdou quase integralmente a rejeição dele, que é muito forte entre a classe média.

P. A presença do Lula se converteu em algo tóxico?

R. O PT sem Lula viraria o PSOL, uma força sólida, mas muito minoritária. Já disse: o lulismo é maior do que o petismo. Agora, o Lula, por continuar preso e incomunicável, poderia parar de ser tão visível. Mas o PT não vai se desvincular do legado do Lula. É o que levou ao Haddad ao segundo turno.

P. Por que o PT manteve os seus velhos discursos enquanto o Bolsonaro chegava mais longe sendo o porta-voz do antipetismo?

R. É voltar ao tamanho do partido. O PT se tornou um partido popular, representante dos setores trabalhadores, certas frações da pequena burguesia, mas sobretudo das massas desorganizadas e dos setores mais pobres da sociedade. Qualquer movimento, tanto um giro à esquerda clássica quanto um giro à centro-esquerda, pode ser fatal. Então a tendência é que o PT faça os dois movimentos simultaneamente. São contraditórios, mas o PT sempre fez.

P. O PT deveria ter respondido às acusações de corrupção?

R. O modo como PT tratou a questão da corrupção foi duplo. Primeiro utilizou como discurso o fato de que todos esses instrumentos que permitiram a combate à corrupção foram implementados pelos governos do PT. Mas esse é um discurso formal que não encampa toda o assunto porque é também uma questão de conteúdo. O discurso que não é assumido explicitamente pelo partido é que o PT praticou o caixa 2 nas eleições, porque é algo inerente ao sistema político brasileiro.

P. O que quer dizer?

R. Todos os partidos se valem de caixa 2 nas eleições. É uma exigência quase estrutural. Sem caixa 2 ninguém consegue ganhar a eleição. A quantidade de recursos que se mobiliza é acima do que é permitido por lei. As leis são muito restritivas em relação às doações. Sempre foram. Isso é um fato que a população não aceita, e que a própria mídia condena e que todos são obrigados a dizer que não usam. Mas a política no Brasil não pode ser feita com estas restrições.

P. Isso encaixa as acusações de corrupção em um contexto?

R. Os partidos populares no Brasil, e o PT é um partido popular, sempre foram combatidos por conta da corrupção. Foi pela acusação de corrupção que Getulio Vargas foi forçado a se suicidar em 1954. O então presidente brasileiro respondeu às tremendas pressões, frutos de uma crise política provocada por seus adversários políticos, com um disparo contra o seu próprio peito. E foi a corrupção que foi usada para justificar o golpe do 1964. É uma política quase circular dos setores representantes das classes dominantes, dos setores que defendem diretamente interesses empresariais. Sempre fez parte do jogo eleitoral.