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Tema Livre

01/08/2020 08:30

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TEMA LIVRE: Tudo harmonizado, por Ediane Palhano

Era quarta-feira. Só mais uma quarta. Daquelas que não significam nada. Eu não gosto de quarta-feira. Ela não tem a preguiça de uma segunda-feira e nem as lamúrias de uma terça, pelos afazeres da semana.  Não tem as expectativas de uma quinta e tampouco as surpresas de um sábado à noite. É apenas quarta.

Eu dirigia de volta para casa, depois de comprar meus creminhos para o rosto, aqueles que prometem sustentar a mínima dignidade possível que uma mulher com mais de trinta anos precisa ter, quando paro no sinal vermelho e sou surpreendida com uma cena: Um enorme colchão de casal em cima de um pequeno carro. 

Achei tão inusitado para uma quarta-feira. É comum a gente ver colchão sendo carregado aos sábados, mas às quartas, é realmente surpreendente. Porque não esperaram pelo sábado? É tão ordinário gastar um sábado para se fazer isso.

Tem coisa que precisa combinar com o dia para ela acontecer. Não que esteja escrito em algum manual de vida, mas fica mais harmonizado. Mudanças e feijoadas combinam com sábados, assim como tardes melancólicas combinam com domingos.

O sinal abriu, o colchão se foi, mas eu permaneci intrigada. Um colchão de casal sendo carregado  em plena quarta-feira?

Como eu gastei muitas noites de terças, assistindo episódios de C.S.I, encontro-me gabaritada para realizar uma investigação a partir de uma única cena. Já falei que sou formada em séries investigativas? Está inclusive, no meu currículum lattes.

Então vamos lá! O condutor do carro não se importou em romper com clássicos e ancestrais protocolos de dias e eventos. O condutor ostenta um otimismo pulsante pela vida, sustentado pela crença de que a gente sempre pode dar um jeitinho em tudo, haja vista o tamanho do carro e do colchão.  O condutor tinha pressa, muita pressa, pois não aguardou o tradicional dia de sábado para realizar a mudança. Diante desses fatos, só posso presumir que o condutor está apaixonado. Claro! Claríssimo como a nossa cara carrancuda às segundas-feiras sempre denunciam nosso mal humor.

Já em casa, iniciando minha rotina noturna de skincare - aquele ritual diário- de passar sabonetinhos e creminhos que sustentam a promessa de tentar suavizar e porque não dizer, adiar, a tão temida e aterrorizante ação do tempo- Fiquei pensando naquele colchão sobre o carro que ainda trafegava pela minha imaginação.

Seria realmente alguém apaixonado? Gente apaixonada faz coisas estranhas. Quem nunca passou o dia todo no trabalho sem conseguir produzir nada porque aguardava ansiosamente pelo cinema marcado para sexta-feira? Quem nunca ignorou a possibilidade de ser assaltado e namorou dentro de um carro em plena quinta-feira à noite? Quem nunca perdeu a hora numa segunda-feira, depois de uma longa e ardente noite de amor no domingo?

Gente apaixonada ostenta um risinho besta de canto de boca, mesmo naquela reunião chata às terças-feiras de manhã no trabalho. É incapaz de esconder aquele brilho no olhar. Fica disperso e comumente não se concentra. Somos capazes de reconhecer alguém apaixonado até mesmo num velório em plena quarta-feira chuvosa. Quem tá apaixonado não consegue esconder. Suas feições faciais mudam, seu brilho no olhar se modifica e sua pele parece ter passado por moderníssimos procedimentos estéticos. Fica tudo milimetricamente harmonizado.

Nossa! Como você tá linda! Fez harmonização com quem?

Harmonização? Não. Não fiz nada.

Mas sua pele tá tão lisinha... Não tem nenhuma marca.

 Juro que não fiz nada. Só estou passando uns creminhos à noite.

Então você só pode estar apaixonada.

É. Na verdade eu conheci uma pessoa...

Aperto um conta gotas dourado na palma da mão e caem duas gotinhas brilhantes do creme que acabei de comprar. Faço movimentos circulares no rosto enquanto rogo para que Nossa Senhora do Creme Nívea da Latinha Azul interceda por mim – releio a bula e para meu desapontamento nenhuma promessa parecida com “use diariamente e tenha a pele de gente apaixonada”. Isso sim seria uma novidade dermocosmética.

Eu já tive essa pele algumas vezes na vida, mas nesse momento estou cheia de marcas. Algumas foram inclusive adquiridas carregando colchões por aí e gargalhando ao lado da pessoa amada. Outras, carregando colchões de volta e chorando pela perda da pessoa amada. Viver, amar, sorrir e chorar inevitavelmente deixam marcas. Acho tão esquisita essa geração que se recusa a ter marcas – no rosto e no coração – Coisa estranha. Jura que eles acreditam que isso é possível?

Já passa da meia noite, é quinta-feira, deito no meu colchão e enquanto aguardo meu creminho secar, encerro minha investigação iniciada momentos atrás. O condutor do carro estava realmente apaixonado, porque só alguém apaixonado se dispõe a carregar um colchão de casal em um pequeno carro em plena quarta-feira à noite. E para completar, ainda me arrisco a afirmar que fatalmente chegarão atrasados amanhã em seus respectivos trabalhos e que inevitavelmente terão que lidar com as tradicionais piadas que não têm dia para acontecer: “Noite foi boa ein!? Sua pele tá ótima!”

* Ediane Palhano é psicóloga

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