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24/08/2015 07:00

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A desbravadora da ocupação Portal da Lagoa

-“Eu entrei primeiro. Eu invadi primeiro, entendeu? Cerquei né, aí depois, o restante (das pessoas) já foi cercando e entrando.


-Onde você morava antes? Como era?


-Eu morava lá no Noroeste entendeu?  É que lá nóis pagava aluguel também... Pobre não tem condição de pagar aluguel não, porque é um dinheiro que vai e não volta. Tem que estar certo ali, porque você vê minha filha, vou pagar luz... pagar aluguel... Ninguém aguenta. Deus me livre”.

Patrícia Custódio é uma mulher negra de 27 anos. Mais uma moradora dos diversos bairros periféricos de Campo Grande. Patrícia, além de se diferenciar de muitas pessoas na sociedade pela discriminação de gênero e de cor, se diferencia porque mora em um “não lugar”. Patrícia ocupa o lugar onde mora, uma relação visceral com a moradia.

No Bairro São Caetano, próximo a Universidade Católica Dom Bosco, em uma região considerada rural, o “Portal da Lagoa” é um local de ocupação em um Condomínio particular. Local onde Patrícia mora com os filhos e marido. Mas o que são ocupações?

                                   Portal da Lagoa, no bairro São Caetano (foto: Geovanni Gomes)

Empurrados cada vez mais para a periferia, diversos trabalhadores e trabalhadoras não dão conta dos alugueis cada vez mais altos e eis que surge o burburinho: “fulano tá querendo invadir lá, acho que a gente pode ir também”. E assim surgem as ocupações. Essa é a primeira matéria da série “Uma cidade de ocupações: o lado escondido de Campo Grande”

“É esse processo de produção do espaço, de valorização das áreas, então as pessoas vão sendo expulsas de algumas regiões. Expulsas de várias formas. Às vezes ela vende a casa porque valorizou, pra pegar esse dinheiro e dar para o filho pra construir uma casa. Mas é levada pra periferia cada vez mais. As ocupações começam com pessoas que não conseguem pagar aluguel, ou moravam de favor em outros locais. Há um estímulo, uma espécie de iniciativa coletiva de ocupar”.

Autor da dissertação de mestrado O processo de produção do espaço urbano em Campo Grande, MS: uma análise da diferenciação sócio espacial a partir da favela Cidade de Deus”, João Paulo Muniz vê que a questão das ocupações são muito impulsionadas quando a moradia é um negócio lucrativo.

No último censo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou três aglomerados subnormais em Campo Grande. São eles: a favela Cidade de Deus no bairro Dom Antônio Barbosa, a Alta-Tensão no bairro Moreninhas e a Vila Nossa Senhora Aparecida na Vila Nasser. 

Ainda assim, quem sair da beleza pra turista ver das regiões centrais e se aventurar pelas periferias, vai encontrar em todos os bairros, de todas as regiões, comunidades de ocupação. E não são feitas só de barracos.

Visitas em diversas regiões revelaram ocupações irregulares, sejam barracos ou casas com boa estrutura, na Comunidade Cidade de Deus, no bairro Dom Antônio Barbosa; Residencial Mário Covas; Portal da Lagoa (ocupações no condomínio particular) no Bairro São Caetano; Vila Bordon; Alta Tensão e Nova Esperança no bairro Moreninhas; Nova Lima; Montevidéu; Morada Verde; Jardim das Hortências; Nossa Senhora Aparecida na Vila Nasser e Nossa Senhora das Graças.

                              Ocupação no bairro Jardim das Hortências (foto: Geovanni Gomes)

Dados da estrutura de formação da capital mostram que a urbanização, como na maioria das cidades, começou pelo centro. A história é sempre a mesma: a infraestrutura valoriza o terreno nas regiões centrais, a especulação imobiliária se assenta e o preço expulsa quem não pode pagar, para a periferia. Nos bairros, as contradições se encontram quando ao lado de barracos ou de ocupações, se espalham condomínios e anúncios imobiliários.

O negócio da moradia chega à periferia. E o que fazem aqueles que não podem pagar aluguel? Ocupam. 

Quando Patrícia chegou ao Portal da Lagoa, há três anos, só havia mato. No bairro Noroeste, onde pagava aluguel, ela mal via a família. Com três filhos pra criar, o aluguel dificultava as contas.

Bastou um momento em que o cansaço chegou ao limite e Patrícia ganhou a marca de muitos outros brasileiros. Ela é mais uma “invasora”. O que é mais um estigma pra quem já carrega tantos? Quando a definição do dia-a-dia é sobreviver, a linha entre o legal e o ilegal é rompida.

As ocupações variam de tamanho e estrutura de acordo com a capacidade das pessoas de aguentarem as condições precárias. Podem ser permanentes ou temporárias. São fatores diversos que fazem com que as pessoas fiquem ou não ocupando.  Mas são todos, ao seu modo, lutadores e lutadoras. Pessoas que cansam de esperar o desenvolvimento de políticas públicas e aos poucos levantam a própria moradia. Surge, também, uma linguagem própria. Invadir. Ocupar. Resistir. Desistir. Não aguentar.

                                                 Entrada do Portal da Lagoa (foto: Geovanni Gomes)

Patrícia trabalhou junto da família e aos poucos, o que parecia um lugar selvagem, foi ganhando outro aspecto. O Portal da Lagoa, antes abandonado, ganhou utilidade, finalidade e uso. Aos poucos, e pra demarcar o território, Patrícia ergueu uma casa de cimento. Vizinhas, a mãe a irmã moram a um grito de distância. As condições são difíceis. A segurança é inexistente. Polícia? “Só vem mesmo quando se mata alguém”, ela conta.

Mas ali ela consegue dar de comer para os filhos com o salário do marido que é encanador. Aos finais de semana, se uma festa acontece perto, lá vai Patrícia e a família vender espetinho, aumentar a renda.

                                         Patrícia Custódio (foto: Geovanni Gomes)

E assim a vida segue. Energia elétrica e água conseguidas com “um jeitinho”. Mas a família está perto. E agora, o dinheiro do aluguel pode ser usado para, quem sabe às vezes, um momento que seja um pouco mais do que apenas sobreviver.



-Como é Campo Grande pra você?

 

-Ah, ali no meio da cidade é bonito né, mas no resto dos bairros que você vai... Falam que não existe favela, claro que existe favela, tá cheio de favela campo grande.

 

"Se não tem água
Eu furo um poço
Se não tem carne
Eu compro um osso
E ponho na sopa
E deixa andar
Fale de mim quem quiser falar
Aqui eu não pago aluguel
Se eu morrer amanhã, seu doutor
Estou pertinho do céu"

O canto de Zé Keti na música "Opinião", sobre os morros cariocas, não parece tão distante de Campo Grande. Pra quem vive na periferia ou vive de qualquer tipo de ocupação, Campo Grande tem favela sim.

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