Menu
sexta, 29 de março de 2024 Campo Grande/MS
PREFEITURA CAMPO GRANDE MARÇO 2024 3
Política

Sérgio Cruz foi preso na Ditadura por escrever carta a amigo que morava em Moscou

Ex-parlamentar e radialista disse que imprensa de Campo Grande apoiou regime por ‘comungar das mesmas ideias do governo militar’

31 março 2018 - 13h13Por Celso Bejarano

Radialista, ex-deputado estadual e federal pelos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (1975-1979; 1983-1987), o radialista Sérgio Manoel da Cruz, o Sérgio Cruz, 75, um dia depois do golpe de 31 de março de 1964, 54 anos atrás, foi detido “por puro acaso”, em Cuiabá, então capital de Mato Grosso. 

À época, com 21 anos de idade, segundo ele, não era subversivo, apenas um “democrata convicto e um repórter humanista”.

O motivo de sua prisão, que durou um mês, de acordo com explicações das autoridades policiais, teria sido a descoberta de uma carta escrita por ele e que seria remetida a um amigo que estudava curso superior em Moscou, capital da extinta URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Bastou. A URSS simbolizava o regime comunista no planeta terra.

A história da prisão de Sérgio Cruz ocupou grande espaço do artigo produzido pela professora da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), a doutora em História, Suzana Arakaki, titulado como “As implicações do golpe civil-militar de Mato Grosso: apoio civil, autoritarismo e repressão (1964-1969)”.

O texto diz que logo depois do golpe autoridades militares “prendiam qualquer pessoa que significasse perigo”, no caso quem fosse contrário ao regime ditatorial.

VINDO DO PERNAMBUCO
De acordo com Suzana, Sérgio Cruz, pernambucano veio para MT [estado separado de Mato Grosso do Sul em 1977] em 1960, “vindo diretamente para a região de Dourados estabeleceu-se em Vicentina, região da Colônia Agrícola de Dourados, a CAND. Começou a trabalhar na Rádio Clube de Dourados, como radialista. Lembra que trabalhava com Sultan Raslan, também ex-deputado estadual. Atuaram juntos na mesma legislatura e participaram da primeira constituinte de Mato Grosso do Sul (1978-1982)”.

Na entrevista concedida a historiadora, Sérgio Cruz disse recordar-se “que nesse período estava em Rondonópolis (MT), onde exercia a função de jornalista da Associação dos Municípios, cujo presidente era o prefeito dessa cidade. E foi nessa condição que, no dia 1º de abril de 1964 foi preso, já na cidade de Cuiabá (MT), para onde viajara após o golpe militar. Cuidava, junto ao presidente da Associação, da instalação da sede na capital. Chegando em Cuiabá, hospedou-se num hotel, e naquela manhã apareceram policiais civis à procura de duas pessoas conhecidas suas, que também tinham o costume de lá se hospedar”.

Segue o diálogo do radialista com a doutora em História: “mas o atendente do hotel informou que essas pessoas não se encontravam hospedadas, mas somente o jornalista Sergio Cruz que confirmou que conhecia as pessoas procuradas. E os policiais solicitaram que os acompanhasse à chefatura, sendo de lá levado, agora na condição de preso, para a cadeia pública”.

Sérgio Cruz narra à professora que “soube das razões de sua prisão pela conversa entre dois policiais. Um perguntara a outro porque o ‘conduzido’ estava sendo preso e ouviu a resposta: ‘esta sendo preso como agitador comunista”.

De acordo com o redigido, o radialista quis saber os motivos de sua prisão, mas foi repreendido pelos policiais: “...você só fala quando alguém lhe perguntar”. Daí em diante, Sérgio Cruz permaneceu na prisão por um mês, sem prestar qualquer depoimento.

O radialista disse não ter sido torturado, contudo, colegas de cela – 20 pessoas num cubículo de 15 metros quadrados – não tiveram a mesma sorte.
“Todos presos sob a ‘acusação’ de serem comunistas. Soube [Sérgio] apenas que ali havia integrantes de movimentos sociais ligadas a terra, e de partidos políticos”, afirmou o radialista.

Suzana Arakaki, doutora em História.

MOTIVO DA PRISÃO
Trecho do publicado de Suzana Arakaki destaca ainda o motivo da prisão do radialista.

“Foram trinta dias numa cela infecta, com precárias condições de higiene e o pior era a desconfiança entre os presos. Todos desconfiados e temendo uns aos outros. “Ficamos trinta dias falando amenidades, ninguém se identificava com receio do outro”. No vigésimo nono dia de prisão foi levado novamente à chefatura de polícia para depor. Conta que as perguntas eram as mais imbecis e idiotas possíveis, tudo em razão de uma carta achada durante uma revista no seu quarto de hotel em Rondonópolis. Era uma carta endereçada a um amigo em Moscou”.

Sérgio Cruz conta à historiadora que realmente escreveu uma carta, que nem sequer enviou, a seu amigo. No texto, o radialista disse que o amigo era J. Alves e que também tinha vontade de ir estudar em Moscou. Ele assegura ainda que na carta escreveu “amenidades”, nada sobre regime político.

“Mas nenhuma manifestação de conotação ideológica até porque não era marxista e era contrário ao radicalismo da esquerda. Enfim, era apenas um democrata convicto e um repórter humanista. A democracia, com todas as suas mazelas, ainda é o melhor regime político, afirma ele. Mas se confessa um simpatizante de Jango [João Goulart, presidente do Brasil deposto por militares em 31 de março de 1964] e de suas ideias sobre reforma agrária”, diz Suzana Arakaki no artigo sobre o período da Ditadura no então Mato Grosso.

Sérgio Cruz recorda que “em 1963 quando o ex-presidente esteve em Dourados, foi o locutor do serviço de alto-falante da carreata que conduziu Jango e comitiva pela cidade, a convite de Rui Gomes da UDN. Mas concorda que Jango sofria forte oposição em seu governo. Na condição de radialista na extinta Rádio Clube de Dourados, lembra que a emissora recebia acetatos grandes, com lado A e lado B, que eram discos produzidos pelo IBAD com matérias contra o perigo comunista e contra o governo de João Goulart, que representava um perigo contra a liberdade. Alguém levava os discos, pagavam adiantado pelas divulgações”.

“Proselitismo contra o comunismo, contra a reforma agrária, denúncias de infiltração comunista no governo de Jango e essas divulgações encontravam simpatizantes na população. Sergio Cruz lembra-se de ouvintes que, quando o encontravam na rua, comentavam e gostavam do material divulgado. E de fato havia ampla divulgação visto que o único jornal da cidade, O Progresso, naquela época, era semanal. A rádio tinha muito mais audiência e alcance”, destacou a articulista.

O ex-deputado disse, segundo o artigo, que assim que libertado, foi embora para o interior do estado de São Paulo onde trabalhou como radialista.

CIDADE MILITARIZADA
Ele conta ainda que voltou para Campo Grande, em 1968, e encontrou uma cidade “militarizada”, com censura severa nas rádios e jornais, com sensores dentro dos órgãos de imprensa, em épocas de crises ou denúncias.

Suzana Arakaki segue narrando a entrevista com Sérgio Cruz:

Rapaz tenta escapar dos policiais em ato contra o regime, em SP

“Recorda-se [Sérgio] do episódio em que o censor picotou a fita do III Festival Internacional da Canção, em 1968. A música vencedora foi ‘Sabiá’, de Tom Jobim e Chico Buarque, interpretadas por Cynara e Cybele. A segunda colocada foi a música Para não dizer que não falei das flores. A rádio em que trabalhava havia comprado os direitos de transmissão do festival, e quando a fita chegou foi transmitida, e recebeu logo após a visita do censor que picotou a fita. A música Prá não dizer que não falei das flores de Geraldo Vandré, classificada em segundo lugar, foi considerada como um apelo à resistência ao governo militar e uma ofensa às instituições militares em razão do refrão: “[...] há soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos de armas nas mãos. Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição, de morrer pela pátria, e viver sem razão [...]”.

Vandré, o autor da canção foi exilado, morou um período na Argentina e sua música foi censurada até 1979.

O artigo da historiadora menciona como era difícil se expressar politicamente na gestão ditatorial:

“Depois da rádio, Sergio Cruz foi trabalhar num jornal tipo Pasquim [jornal com papel de oposição ao regime militar, editado no Rio de Janeiro, de 1969 a 1991], chamado Panfleto e toda semana era chamado na Polícia Federal, tornou-se quase amigo dos seus censores. “Império da deduragem” é como classifica o clima instalado na cidade [Campo Grande]. Se algum cidadão não gostasse de alguma notícia por qualquer razão, denunciava imediatamente à Polícia Federal. As diferenças eram resolvidas via denúncias e a polícia se prestava a dar ouvidos a qualquer tipo de denúncia, as mais corriqueiras possíveis Para evitar contratempos com a polícia, estudou a Lei de Segurança Nacional e as leis que regiam a censura e quando era chamado para prestar esclarecimentos, já apontava na lei, a inexistência de qualquer crime de sua parte. Era uma forma de se defender e não raras vezes os policiais se irritavam e berravam: a lei aqui somos nós”.

Sérgio Cruz encerra a participação no artigo de Suzana com comentário acerca da participação da imprensa de Campo Grande durante o regime da ditadura: “Quanto à imprensa, esta se colocou totalmente favorável ao golpe, e não por pressão, ou necessidade de sobrevivência, mas por ideologia mesmo, por comungar das mesmas ideias do governo militar”.

Sérgio Cruz ainda mora em Campo Grande e tornou-se um renomado radialista. À época que disputou eleições ficou conhecido como “Pau na mula”, jargão político que usava em seus discursos. Ele quer se candidatar a deputado estadual, ou federal, nas eleições estaduais de outubro.