Advogada especializada em relações entre planos de saúde, médicos e pacientes, Giovanna Trad é a entrevistada da semana do Top Mídia News. Dentre os temas tratados, está a necessidade de recorrer à Justiça para garantir o direito de cidadão. Confira a entrevista na íntegra abaixo:
A judicialização da saúde aumenta a desigualdade na saúde, já que levantamento da Secretaria da Saúde de SP mostra que 65% dos demandantes contra o SUS são usuários da saúde suplementar?
Sempre costumo reafirmar que a sociedade contemporânea não é mais um mera espectadora de suas ruínas, isto é, é proativa no sentido de envidar todas as suas forças para evitar ou recompor lesões injustas sofridas no trânsito de sua existência. O indivíduo, em não conseguindo resolver de forma amigável os conflitos que a vida lhe coloca, acaba se socorrendo ao Poder Judiciário como última esperança legítima para fazer valer o direito que tem ou aspira ter, até porque a autotela (ou no jargão leigo "fazer justiça com as próprias mãos") é medida repudiada pelo Direito Pátrio. A bem da verdade, sempre quando levamos a efeito uma insatisfação para ser apreciada por um órgão judicial, estamos judicializando determinada situação.
Mas o termo judicialização tem o significado maior de descrever como certos conflitos de peso social e político estão sendo, cada dia mais, colocados nas mãos dos juízes e tribunais. Muitos críticos tratam este acontecimento com pesar, entendendo ser algo vicioso e inadequado. Todavia, o movimento não deveria ostentar este ranço negativo, já que judicializar uma questão relevante é dar ao cidadão, por exemplo, a última oportunidade de que usufrua de direitos e garantias fundamentais relegados pelo Poder Executivo em questões de políticas públicas.
Um exemplo ardente disso é a judicialização da saúde, tanto pública quanto privada. Cidadãos ávidos por um tratamento não disponibilizado pelo SUS ou negado pela sua operadora de plano de saúde procuram a justiça para fazer valer seus direitos.
Aliás, tocamos em uma ferida sobremaneira sensível: saúde, cujo bem foi valorado pelo constituinte originário como um direito de todos e dever do estado. E neste arrimo, esclareço a indagação. Ora, o fato de a maioria das demandas contra o SUS advir de pessoas que detém um plano de saúde não torna desigual ou agrava a assistência daqueles que não o detém. Primeiro porque o Poder Público tem a missão constitucional de abastecer à saúde de todos os cidadãos que residem no país, independente de sua nacionalidade, condições econômica e social, com ou sem plano de saúde etc. Em termos outros, cabe ao Estado trabalhar de forma adequada em políticas públicas e gestão eficiente para assegurar a todo e qualquer indivíduo uma assistência universal, integral e equânime.
E mesmo que se questionasse eventual desigualdade na distribuição da saúde pública- com a argumentação de que boa parte do dinheiro estaria sendo destinado às pessoas menos necessitadas economicamente- jamais poderíamos suspeitar em déficits ao erário e a população, já que os planos de assistência à saúde restituem aos cofres públicos os valores que o seu usuário despende no Sistema Único de Saúde.
Enfim, temos mais saldos positivos que negativos na judicialização exercida com responsabilidade. Judicializar é necessário e saudável. É sinal de que uma quadra considerável da população incutiu em sua psique os ideias democráticos. O lamentável deste contexto é a causa deste fenômeno, que reside principalmente na omissão do Parlamento e/ou nas falhas de gestão do Executivo no que toca a uma agenda efetiva e séria de políticas sociais e econômicas.
A judicialização obriga o Estado a internar pacientes em situações discutíveis do ponto de vista médico, com pacientes entrando na frente de outros que aguardavam na fila?
Essa é outra face que tem convulsionado gestores públicos, magistrados e juristas. Na resposta anterior, acenei que as pretensões de assistência à saúde dirigidas contra o estado devem ser apreciadas pelo órgão judicante mediante critérios rígidos. Há um tempo não tão distante, as liminares eram concedidas sem parcimônias, bastando que a parte invocasse o perigo de perecimento do bem da vida. O juízo, sem um respaldo técnico na área médica, na dúvida, optava pelo bem de maior magnitude.
Mas o Judiciário evoluiu, e ostenta um diálogo mais próximo com a sociedade, discutindo, inclusive, políticas públicas e temas de sensibilidade social. Com o nascimento do Fórum da Saúde, produto do Conselho Nacional de Justiça, foram estudados e discutidos mecanismos para monitorar as demandas judiciais no campo da saúde. As profícuas recomendações que o CNJ faz aos Tribunais dos estados têm sido bem recepcionadas. Tanto é que a maioria já instalou câmaras técnicas específicas em processos relacionados à saúde pública, que propiciam maior segurança às decisões, já que trabalham com aparato técnico em saúde para subsidiar os juízes em suas decisões. Há, ainda, outros feitos importantes, como recomendações de varas especializadas em saúde; promoção de fóruns e seminários, audiências públicas, etc.
Portanto, diante da maturidade do Judiciário frente ao tema, dificilmente assistiremos decisões que não atendam aos postulados científicos que regem o caso do paciente.
Por que houve o aumento das ações judiciais ligadas à área de saúde?
Desde o início do processo de redemocratização em 1984, inaugurado com o movimento das "Diretas já", exaltava-se a vontade de sepultar a ditadura militar, para que o povo fosse o titular do poder. Com a promulgação da Constituição Federal em 1988, este sonho restou concretizado. Como corolário da liberdade, o espírito de cidadania reacendeu. A democracia garantiu que um bom espectro da população tivesse acesso à informação de seus direitos. Na mesma toada, o Poder Judiciário expandiu.
O Ministério Público ganhou novas atribuições. A Defensoria Pública cresceu. A Constituição desvendou a postura do cidadão, que não mais se resigna a experimentar sofrimento (estando correto ou não), e ainda desburocatizou o acesso ao Poder Judiciário, com a justiça gratuita. Outra causa da judicialização, segundo explicação do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, foi a "constitucionalização abrangente", consubstanciada com a precitada Constituição de 1988, o que quer dizer que uma questão disciplinada em uma norma constitucional, como a saúde, se transmuda em forte pretensão jurídica. A massificação do atendimento nas redes pública e privada culminou na despersonalização da relação médico-paciente, sendo que a falta de um diálogo aberto viabiliza a instauração de litígios pelo assistido. No caso das operadoras de plano de saúde, o paciente chega à exaustão com tantos sobressaltos, especialmente no que toca à dificuldade do acesso ao tratamento que necessita, resplandecendo inevitável uma contenda. É de se dizer, outrossim, que as ações contra os planos de saúde vêm crescendo desde o advento da lei que as regula, já que nela estão estabelecidas diretrizes que amparam o consumidor.
O usuário do SUS também encontra embaraços para receber a assistência de saúde estabelecida pelo constituinte. Mas ressalvo que a informação ainda é precária em algumas frentes da sociedade, de maneira que o desconhecimento da existência de direitos retira a autonomia do individuo de eventualmente pleiteá-los. Isso quer dizer que o número de processos ainda é mínimo se formos levar em consideração o fato de que os esclarecimentos ainda não chegaram a milhares de brasileiros.
Quem tem de ser responsabilizado em problemas ocorridos durante o tratamento médico: a Administração Pública, os hospitais ou os médicos?
Depende da situação. Quando o dano causado ao paciente advém de um ato essencialmente médico, como uma alta precipitada ou uma imperícia em cirurgia, a responsabilidade civil é solidária, ou seja, do hospital, do facultativo e do ente público responsável.
Contudo, se a lesão sofrida decorrer de defeitos extramédicos, como por exemplo, uma infecção hospitalar, falhas da enfermagem, armazenamento de prontuários, segurança do paciente e familiares, falta de leitos e vagas na UTI, acomodações inapropriadas, falta de plantonistas e equipamentos, a obrigação de reparar os danos é exclusivamente do hospital e da Administração Pública, não devendo recair sobre os ombros do médico.
Aliás, não devemos apontar todos os resultados insatisfatórios como sendo fruto de "erro médico". A maioria dos prejuízos sofridos pelos usuários do SUS decorre da ineficiência da gestão pública e dos parcos recursos destinados à saúde. O profissional é mais uma vítima desse sistema.
Qual o ponto de vista jurídico a respeito dos médicos que tem diplomas estrangeiros, principalmente no Mato Grosso do Sul, que fica próximo de várias faculdades de medicina na Bolívia e no Paraguai?
O médico detentor de diploma estrangeiro, seja formado nos Estados Unidos ou no Paraguai, acaso pretenda exercer suas atividades no Brasil, deverá passar por um rigoroso ritual de provas com a finalidade de aferir suas capacidades técnicas e de proficiência em língua portuguesa. Terá que obrigatoriamente passar pelo exame REVALIDA, elaborado pelo Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). O teste cumpre as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e exige dos candidatos a mesma base de ensino dos estudantes formados no Brasil. Isso tudo para assegurar a qualidade da assistência médica, e garantir a segurança do paciente.
A ideia de acolhermos médicos formados no exterior é muito bem-vinda, desde que sejam criteriosamente avaliados, para não colocarmos em risco a vida de milhões de brasileiros.
Infelizmente, a Lei do Mais Médicos quebrou este valioso protocolo destinado a garantir a qualidade do serviço médico, ou seja, o profissional formado em País estrangeiro que aspirar participar do programa, não precisará se submeter ao exame, comprometendo, deste modo, a higidez do atendimento.