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15/07/2015 13:04

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De que são feitos os sonhos dos haitianos de Campo Grande

O Brasil passou por diversas fases e ondas migratórias. Nosso sangue latino carrega as dores e toda a diversidade do deslocar-se. Assim como olhamos a colonização e nos lembramos da imigração forçada dos escravos, e o século XIX nos remete aos “braços de lavoura” vindos da Europa, pode ser que um dia pensemos no início do século XXI como um tempo em que a precarização do trabalho e os conflitos, internos ou externos, forçaram milhares de pessoas de diversos lugares do mundo a deixarem sua terra, seu lar e seu lugar de reconhecimento.

Eles fazem parte do território mais vanguardista da América Latina no que se refere a abolição da escravatura e a conquista da independência. Período que os negros, grande maioria no país, protagonizaram. No século XIX, passaram por uma sanção econômica por parte das grandes potências (Inglaterra, França e Estados Unidos), parecida com a que Cuba sofre hoje. Por um simples motivo: a coragem de seu povo.

É essa mesma coragem que tem feito milhares de haitianos deixarem seu país, que ainda passa por uma reconstrução política e econômica, por conta não só do terremoto de 2010, mas, também, dos períodos ditatoriais e de profunda intervenção exterior que esse território Caribenho sofre continuamente. “De que são feitos os sonhos dos haitianos de Campo Grande”, essa é a primeira matéria da série: “Um sonho chamado Brasil: os haitianos de Campo Grande”.

                                                               (Produção: Deivid Correia)

Leonet Aurelus é um garoto de 19 anos da região central do Haiti, e assim como muitos jovens do país, comunicou à família que iria para o Brasil. Logo foi questionado “Mas você vai estudar?”. “Sim, falei com alguns amigos que estão lá. E tem como estudar”. Estudar. Para os haitianos que buscam o Brasil com uma gama colorida de sonhos, nosso país e a educação são fatores em harmonia.

Foi em 2004 que o Brasil entrou no jogo de intervenção no Haiti. A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, a Minustah, teve como justificativa a profunda instabilidade política do país à época. O comando foi designado ao Brasil. Nesses 11 anos, cerca de 15 mil militares do Brasil serviram no Haiti. Hoje já se sabe que não só de paz são feitas essas intervenções, e há uma necessidade de que o país consiga se estabilizar cada vez mais, sem a ajuda do exterior.

Apesar disso, o Brasil é um local querido para os haitianos. E é um dos destinos mais procurados desse povo sonhador. São milhares de jovens e adultos que não encontram trabalho e estudo no Haiti. É então que a Epopeia começa, e muitas vezes ela termina aqui: em Campo Grande.


A rota da América Latina

Quando Leonet iniciou sua jornada, indo para o país vizinho, a também caribenha República Dominicana, ele sabia que o percurso seria longo e desafiador. O que Leonet não imaginava eram as inúmeras dificuldades que encontraria no caminho. Ele ficou sete dias em um hotel de Santo Domingo, a capital dominicana. Com o auxílio de um amigo, Leonet conseguiu pagar 200 dólares pelo visto e mais US$40 ao consulado. O país, apesar de ser vizinho do Haiti, é extremamente hostil aos haitianos. Com um consulado abusivo e uma população muito racista, o que Leonet e a maioria dos haitianos desejam é distância da República Dominicana. Leonet mal sabia que essa rota latino-americana ainda apresentaria muitas dificuldades pelo caminho.

                  A rota de países que os haitianos percorrem até chegar ao Brasil (Arte: Deivid Correia)

Ele pegou um avião para Quito, capital do Equador, e no trajeto fez escala no Panamá. Quando chegou ao Equador, ficou dois dias na capital, com dificuldade de conseguir um visto. De Quito, Leonet foi de ônibus para Huaquillas, cidade que faz fronteira com Tumbes, no Peru.

É no Equador que a ação de uma rede de tráfico ilegal de pessoas, os “coiotes”, começa. Em Huaquillas, na fronteira, Leonet foi enganado e roubado por uma pessoa que se "ofereceu para ajudá-lo".

Nos Hotéis e nas ruas das cidades, é desse modo que as pessoas oferecem “ajuda” ao Haitianos que querem vir ao Brasil. “No hotel tinha muitas pessoas que vão para o Peru. Quando eu falei com ‘essa’ pessoa, ela me disse: ‘Se você vai para o Chile, não há problema, se você vai para o Peru, não há problema’, se você vai para o Brasil, não há problema. Quanto você vai pagar?. Foi o que me contou Camius Aristilde. E é o que sofreram Leonet, Camius e a maioria dos haitianos que estão em Campo Grande.

Em Huaquillas, Leonet atravessou a fronteira para Tumbes, no Peru, e foi “encaminhado” para um ônibus para o próximo destino, que ele desconhecia. Sem falar português e muitas vezes sem falar espanhol, os haitianos viajam as cegas até chegar ao destino final, Brasil. Depois de Tumbes, o ônibus ainda passa por Piura, também no Peru, e então chega a Lima.

Em cada local, a rede de tráfico encaminha os imigrantes para a próxima pessoa responsável pelo trajeto. A viagem toda, custeada pelos próprios haitianos, pode variar de 02 mil a 04 mil dólares. O custo da viagem, os locais onde dormem em cada cidade e o jeito que são levados, dependem da sorte de quem eles cruzam no caminho.

Da capital, seguem para Cuzco, depois para Puerto Maldonado, até finalmente chegarem à fronteira entre Peru e Acre, na cidade Peruana de Iñapori e a na Acreana, Assis Brasil. Eles atravessam a fronteira, onde muitas vezes nem pegam autorização da Polícia Federal. Da fronteira seguem para Brasiléia ou Rio Branco, cidades do Acre que têm abrigos improvisados para recebê-los.

Leonet estava exausto, sem dinheiro e assustado. Em Rio Branco, no espaço onde funciona o abrigo improvisado pelo governo do Acre, uma espécie de galpão improvisado, centenas de imigrantes dividiam colchonetes no chão. Haitianos, Senegaleses e Dominicanos são algumas das nacionalidades de quem entra ilegalmente no Brasil pelo Acre. O que Leonet passou em seguida, não há palavras que ele alcance em seu recente vocabulário. “É duro, não tenho como explicar”. Chuva inundando o abrigo, frio, um banheiro que funciona na terra e mosquitos diariamente. A comida fornecida fez mal a Leonet, que teve de comprar alimento durante duas semanas.

               O caçula do grupo, Leonet, que enfrentou a viagem sozinho (foto: Deivid Correia)

A condição dos abrigos, o tráfico de pessoas e a falta de posicionamento do governo federal, que sobrecarrega o estado do Acre, renderam à União um processo do Ministério Público Federal em maio, pela omissão em relação aos imigrantes do Haiti.


Enfim, a Terra dos sonhos

Depois de todo esse percurso, Leonet, Camius, Wilner, Junel, Rosemond e muitos outros pegam ônibus no Acre e vem para Campo Grande e outros diversos destinos no Brasil. As passagens são compradas pelo governo federal, em acordos firmados entre os dois países. “Eu saí de lá (Haiti), eu vinha para o Brasil. Não sei se ia para a capital, se ia para outra cidade...”. Quando entram no território do Acre, os haitianos só trazem um sonho chamado Brasil.

Os destinos que seguem depois variam de acordo com amigos e familiares que já estão no Brasil, ou com as informações que recebem. O fluxo migratório é feito através da comunicação entre eles. Os que estão aqui avisam os que estão no Haiti e assim começa a crescer a expectativa de entrar no país.

Em Campo Grande vivem hoje cerca de 60 haitianos de diversos lugares do Haiti. A maioria deles se concentra no Bairro Rita Vieira, mas alguns moram nos arredores do terminal Morenão e em outros lugares da cidade. Dividem casas com familiares ou amigos. Trabalham em sua maioria como serventes de pedreiro, na construção civil. Mas entre esses trabalhadores, podemos encontrar professores, taxistas e apaixonados por teatro e música.

Camius é o mais brincalhão de todos os haitianos que conheci. Não tem um só amigo que fique de fora das suas brincadeiras. Ele tem 45 anos e deixou dois filhos no Haiti, além dos pais e dos irmãos. Uma filha de 11+10 e um filho de 5+4, uma brincadeira que ele faz com a idade deles. Depois de uma “decepção amorosa” com a mãe de seus filhos, ele quer se casar com uma brasileira.

                                         O "Brincalhão" Camius (foto: Deivid Correia)

“Campo grande não tem violência. Não sei se tem em outro bairro. No Rita Vieira não tem”. É assim que os haitianos veem Campo Grande: uma cidade tranquila para morar. Camius tem uma permanência que conseguiu na Polícia Federal, que ele deve renovar a cada três meses.

Leonet é o caçula de todos eles. Quando veio ao Brasil, tinha 19 anos. Assim como Camius, ele mora no Rita Vieira, em uma casa com o tio e um primo. Hoje já está com 20 anos, e guarda os sonhos e a saudade dos pais e dos irmãos, que não vê há sete meses. “Vim com muita esperança. O povo brasileiro é muito... ‘muito coração bom’”, me conta ele em meio a sorrisos tímidos. A rotina dele se divide entre o trabalho, o estudo e a Igreja Divino Espírito Santo, no bairro Rita Vieira. Leonet também sonha em cursar Agronomia aqui em Campo Grande.

Para Rosemond, de 38 anos, Campo Grande tem pessoas boas e um clima muito parecido com o do Haiti. “A única coisa é que não tem as praias”. As belas praias do Caribe fazem muita falta a esses haitianos que agora moram em um estado que não possui litoral. Rosemond leva uma rotina tranquila. Faz a própria janta todos os dias depois do trabalho. “Final de semana eu fico na minha casa, descanso, lavo minha roupa e limpo a minha casa, porque não gosto que ela fique feia. Gosto dela cheirosinha”, ria ele.

                                     Rosemond Piard (foto: Deivid Correia)

Junel é um professor de espanhol de 26 anos. Em Campo Grande ele trabalha como servente de pedreiro, profissão que teve de aprender, “trabalhando”. “Eu gostava muito de ensinar”, me conta ele. “Para nós, haitianos, é tranquilo, porque vocês, brasileiros, ‘têm um carinho para nós haitianos’”. Além da família, é claro, o que ele mais sente falta são as Mangas e as praias. Mangas? Sim, eu tive a mesma surpresa e brinquei dizendo que no Brasil tem muita manga. Ele me olhou como quem tenta explicar o impossível: “São diferentes e são melhores”. Um dos principais produtos da economia agroexportadora do Haiti são, de fato, as tão famosas mangas.


                             O professor de espanhol, Junel Ilora (foto: Deivid Correia)



Brasil e Haiti: irmãos

“Para mim, tem momentos que estou triste, e quando estou com os brasileiros, fico feliz”. Depois que Junel me contou isso, entendi porque Haiti e Brasil são tão “próximos”. É esse sentimento caloroso, que não tem um nome específico, que une o povo de língua Crioula com os Tupiniquins. A política, a língua e a realidade social podem ser muito diferentes. Mas os sorrisos, uma maneira de expressar que as coisas não vão tão bem, mas continuam,  e o carinho, são elementos que já podem ser considerados patrimônios comuns entre brasileiros e haitianos.

A superação de caminhos tortuosos para chegar ao destino final e a vontade de estudar e trabalhar para realizar grandes coisas no Brasil e no Haiti: é disso que são feitos os sonhos desses haitianos.

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