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Top Literário

14/05/2023 12:31

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Léo Lins, Agatha Christie e Raul Seixas: o mundo ficou chato ou envelhecemos mal?

Top Literário: o politicamente correto, lugar de fala e o contexto histórico

"Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Nunca ouvi muito Raul Seixas, mas essa frase sempre me guiou de certa forma. Daria uma tatuagem brega, porém hoje é ponto de reflexão após assistir ao polêmico Léo Lins, autointitulado o humorista mais censurado do Brasil, que realizou shows em Campo Grande neste fim de semana.

Através da piada, ele critica o racismo estrutural presente na polícia. Através da piada, ele mostra como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tratava os indígenas brasileiros. Lins também ridiculariza a linguagem neutra, uma pauta que considero válida, mas que, avalio eu, esvazia discussões mais primordiais como respeitar as pessoas, independente de sua identidade de gênero, e investir em uma boa educação, afinal as pessoas não aprenderam nem o português como está.

Também dei risada quando Léo falou que o presidente Lula (PT) tem uma 'capivara criminal' (ficha policial) maior que o problema da capivara Filó, adotada pelo influencer e ribeirinho Agenor Tupinambá. E quando lembrou da polêmica com o ex-governador André Puccinelli (MDB). Não acredito em santidade, nem da esquerda, nem da direita. Tenho preferências, mas ambas as vertentes necessitam autocrítica. 

Por outro lado, senti muito desconforto em algumas piadas. Algumas não, várias, muitas, a maioria, confesso. Quando Léo Lins tira sarro de Thaís Carla - sem citar o nome -, uma mulher gorda, eu olho para o meu corpo e fico pensando o que as pessoas falam de mim. Quando ele faz uma piada sobre suicídio, eu lembro do caso recente da jovem que tirou a vida por conta de bullying e também das ex-amigas, linchadas por agir emocionalmente em uma situação de estresse. 

O humor ácido, como Léo descreve, pois diz que "humor negro" está proibido, pode ser uma crítica válida para quem pensa como ele, mas me machuca de formas que ele sequer imagina, pois nunca esteve no meu lugar. E, conscientemente, ele não quer se colocar em minha pele. Esbraveja: hora de deixar a empatia de lado - além de destacar que mulheres têm mais dificuldade de deixar a empatia debaixo do tapete. Ele sabe!

Empatia é a capacidade de pensar nas emoções do outro. E a falta de empatia também pode ser um mecanismo de defesa. Quando deixo de ajudar uma pessoa em situação degradante para não me afundar junto, eu naturalmente a desligo para garantir a minha sobrevivência. É senso comum. Uma pessoa se afogando puxa para baixo o seu salvador, na luta desesperada pela vida. Se não houver preparo, podem ser duas mortes ao invés de uma.

E exaltamos o oposto também. Chamamos de heróis àqueles que colocam a necessidade do outro acima da própria. Padre Lancellotti, por exemplo, pode ser decepcionante se eu conhecê-lo de perto ou em um dia ruim, mas não há dúvidas que sua abnegação em prol do próximo vem fazendo a diferença na sociedade.

Lins tem razão em algumas partes. Não posso, eu, rir da tragédia cotidiana? Se eu abrir mão do riso, o que me sobra? Como jornalista, consigo pensar em almoço logo após escrever sobre um estupro. Autodefesa. Às vezes, não consigo separar a dor do outro da minha e me sinto mal com a história que escrevo, choro em casa sozinha ou saio em uma luta desenfreada para que aquele caso seja lembrado.

Em ambas as situações, me esforço para que a narrativa da notícia faça a diferença: obrigue que a vítima seja ouvida, cobre que o autor seja punido, que as autoridades se empenhem e cumpram a lei. O mecanismo de defesa onde desligamos a empatia pela preservação da própria sanidade tem até nome: despersonalização, um distúrbio quando o limite da normalidade é ultrapassado.

O show todo de Léo Lins é baseado nos processos que o humorista já sofreu. No que a "mídia não conta". O uso do palco pelo direito de ser escroto publicamente. Se um cadeirante brinca com a própria deficiência, quem sou eu para julgá-lo? Mas, devo eu colocar o dedo na ferida de alguém que não está pronto para rir da dor? Lins é inteligente e escolheu, à sua maneira, lutar contra a cultura do cancelamento. Mas abraçou, ao extremo, a defesa de ser babaca em público. 

Se um cadeirante brinca com a própria deficiência, quem sou eu para julgá-lo? Mas, devo eu colocar o dedo na ferida de alguém que não está pronto para rir da dor?

A partir dele, olho pra mim e minhas próprias hipocrisias. Quantas vezes não transformei as minhas dores em humor para entretenimento de amigos e família? O riso no velório, que não anula o sofrimento, mas ajuda a passar aquele momento de luto e desespero.

Agatha Christie, uma das escritoras do meu coração, é racista. Um dos livros mais famosos dela, chamado "E não sobrou nenhum", tinha o título original de "Os caso dos dez negrinhos". Mal sabia ela que seria homenageada em uma criança negra, latino-americana, a que vos escreve.

H.P. Lovecraft via um negro e imaginava um monstro. HBO pegou a ideia dele e criou uma série com apenas personagens negros para ressignificar a obra de um dos pioneiros do terror.

 

Toda vez, me perguntam: "o que pensariam esses autores se vissem o que estão fazendo com as obras deles atualmente?". Minha resposta já tem script: "ele morreu e ressuscitou agora ou ele viveu durante as mudanças da sociedade, evoluiu, repensou, analisou, mudou de ideia ou manteve o pensamento retrógrado? Pediu desculpas ou se manteve no erro?".

A nossa rainha da sofrência, Marília Mendonça, pioneira em uma fase do sertanejo universitário liderado pelas mulheres - não que não houvesse mulheres sertanejas antes, mas ela praticamente inaugurou uma nova era na linha do tempo do estilo musical. Durante uma de suas lives na pandemia, fez uma brincadeira extremamente comum, mas transfóbica. Foi duramente criticada e aceitou.

A cantora, então, chamou gente que conhece do assunto e deu voz para essas pessoas através do seu alcance, que era, e ainda é, gigantesco. Marília errou sim, mas porque era humana e estava propícia a falhas. Apesar disso, mostrou uma humildade incrível ao reconhecer o erro e ouvir o que a sociedade tinha a dizer. Foi gigante.

Não é o único caso. O youtuber Casimiro, ou Cazé, sempre prefere chamar pessoas mais habilitadas para discutir assuntos que ele não tem conhecimento. Anitta chegou a fazer isso quando cobrada sobre sua posição política, e muitos outros. Felipe Netto mesmo é um homem que se adaptou conforme sua maturidade. Continua errando, mas se mantém disposto a rever o que erra e mudar.

Olho para mim aos 15 anos e não concordo com minha visão de mundo da época. Ouvindo a primeira biografia de Rita Lee - ainda estou na metade, vejo como ela também foi extremamente crítica ao seu passado. Contando suas aventuras de moleca desajeitada, de forma que até parece uma criança indigna de amor, sem citar sequer um episódio que mostrasse como mudou a vida das pessoas ao seu redor, inspirou e mereceu o amor de amigos e família.

Está tudo bem errar. O Poderoso Chefão, de 1972, fala sobre a máfia. Não poderia esperar flores. Há assassinatos, tiros e espancamentos. Mas, em 2023, vejo que é extremamente misógino, mesmo para um filme de gângster. Todas as mulheres da história agem sem pensar, como seres indefesos, sem cérebro, movidos apenas pela emoção, que devem ser protegidos da verdade e que devem ser ignorados quando opinam.

Pode ser o pensamento da máfia retratada no filme? Sim. Mas é também como as mulheres são mostradas fora da ótica dos personagens. O filme não deixa de ser magistral, mas retrata sua época. Está tudo bem termos protagonistas homens, brancos e héteros, mas apresentar todas as mulheres coadjuvantes, ou minorias, como seres burros, desprovido de intelecto, é inaceitável hoje em dia. O filme foi incrível para sua época, deve ser assistido como é, sem alterações, mas é sempre necessário lembrar o contexto histórico que envolveu aquela obra, sem deixar a crítica de lado. 

 

Entre as minhas hipocrisias, concordo com as pessoas que consideram J.K. Rowling transfóbica, mas não deixo minha paixão por Harry Potter de lado. E, como humanos são todos incoerentes, vale lembrar que ela teve que abreviar seu primeiro nome, pois autora mulher afastaria o público.

Hoje penso de um jeito, ontem estava em dúvida sobre o assunto e anteontem era defensora do total contrário. A pergunta que faço é: o mundo ficou chato ou nós que envelhecemos mal? Estamos dispostos a olhar o passado e corrigir o que acreditamos ser errado ou seremos idosos intransigentes, aproveitando da licença poética para continuar com os mesmos preconceitos?

Amanhã eu volto para dizer o oposto do que eu disse antes. Mas, por enquanto, prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

Diana Christie * Esse artigo não reflete a opinião do TopMídiaNews

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